Jornalismo entre o julgamento histórico e o conchavo histórico – 06/09/2025 – Alexandra Moraes – Ombudsman

A imagem mostra uma frigideira preta com um ovo frito. O ovo tem a clara branca e a gema é representada por um círculo azul, uma bandeira do Brasil estilizada. O fundo da imagem é amarelo.

A semana que começou com um julgamento histórico da trama golpista rapidamente se viu transformada na semana de um conchavo histórico, mesmo para um lugar como o Brasil, onde conchavo é dos recursos mais abundantes. Já na segunda (1º), a notícia era “Tarcísio discute anistia na véspera do julgamento de Bolsonaro”.

(Abro aqui um espaço para reproduzir a queixa de Magda, uma leitora atenta e ciosa da linguagem, sobre o título que anunciava o julgamento em si. “‘STF começa julgamento sobre trama golpista que deve sacramentar destino de Bolsonaro’. Isso o repórter poderia dizer na mesa do bar, informalmente, mas não num texto jornalístico sério. Sacramentar destino? Julgamento pode definir, selar o destino de um réu. Não sacramenta nada. Creio que a seriedade do tema pede uma linguagem mais formal.”)

Com ou sem sacramento, a cobertura jornalística precisou se adaptar. O julgamento ia ficando em segundo plano diante de um assunto que estaria enterrado até segunda ordem, depois do “sentaço” promovido por parlamentares bolsonaristas no Congresso: o projeto de anistia que beneficiaria sobretudo Jair Bolsonaro, um dos réus no Supremo Tribunal Federal.

O zumbi da anistia passou a dominar a cena em minutas que pululavam nos sites jornalísticos, enquanto as defesas dos réus se sucediam em rapapés na Corte. Como o Brasil teria ressuscitado tão prontamente esse “morto muito louco”, porém, ainda permanecia um mistério para quem tentava se inteirar do assunto.

Nesse sentido, a entrevista da Folha com Ciro Nogueira, presidente do PP/Progressistas, e as reações a ela ajudaram a mapear um pouco melhor o cenário. No final da semana, o jornal jogou um pouco mais de luz sobre o tema com um “entenda em 6 pontos a anistia discutida no Congresso“.

Menos misterioso, o papel assumido pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), pareceu tomado com naturalidade incompatível com sua atuação. O mandatário do Executivo paulista se deslocou para Brasília para conduzir negociações que não tinham a ver com o estado, mas com seu padrinho político, atualmente inelegível, em prisão domiciliar e portador de tornozeleira eletrônica.

Não foi sem avisar: numa entrevista ao Diário do Grande ABC, na sexta-feira, Tarcísio escancarava seus objetivos (ou seus pedágios) sem constrangimento. “Tarcísio diz que indulto de Bolsonaro será primeiro ato de governo, caso eleito presidente”, relatava a Folha, assim como outros veículos, sobre a entrevista.

Neste jornal, porém, uma parte importante das declarações do governador levou dias para ser notada. Coube a uma das análises do julgamento de Bolsonaro colocar na Folha o “não posso falar que confio na Justiça” proferido por Tarcísio de Freitas na mesma conversa com o Diário do Grande ABC. Em seu noticiário, a Folha registrou uma versão mais branda, uma fala de Tarcísio durante evento em Santo André, na Grande SP. “Eu acredito muito e tenho convicção absoluta na inocência e, se houver Justiça, ele vai ser inocentado”, declarou o governador a respeito de Jair Bolsonaro.

O ataque institucional, que serviu de gancho a editorial do Estado de S. Paulo, encontrou pouca reverberação na Folha. O jornal fez mal ao deixar de lado a anomalia apenas pelo atraso em percebê-la. Era preciso reconhecê-la e cobrar o governador a respeito de mais essa investida.

Enquanto relatava as reinações brasilienses de Tarcísio de um lado, o jornal parecia tratar de outro personagem quando ouvia o governador discursar nos eventos de concessão de rodovias e leilão do túnel Santos-Guarujá.

Um texto destacava um grito de guerra liberaloide (“Estado não dá conta, e é o mercado que vai reduzir a desigualdade do Brasil, diz Tarcísio”), sem informar com a devida convicção suas movimentações eleitorais e a costura para uma anistia. Expressões titubeantes como “citado como possível candidato” e “vem dando mais sinais de uma possível candidatura à Presidência” estavam aquém do que o próprio jornal vinha noticiando: “Tarcísio já avalia perfil de vice enquanto centrão, ex-ministros e Michelle disputam posto”.

Para fins de comparação, “Lula lança programa para distribuir botijão de gás com custo de R$ 5 bi em ano eleitoral” era o enunciado sobre o programa Gás do Povo, que corretamente contextualizava o palanque petista. “O programa deve chegar à totalidade das famílias em março de 2026, ano em que o presidente Lula (PT) concorre à reeleição. A Folha mostrou como o aumento da despesa pública em ano eleitoral tem reduzido a pobreza, mas cria uma armadilha de gastos, rombos fiscais e endividamento.”

Se a corrida eleitoral já começou mesmo bem antes de ter começado, não faz sentido tratá-la como uma suposição inconsequente. Ao poupar Tarcísio e o bolsonarismo do mesmo escrutínio, o jornal presta um desserviço ao leitor. Mais grave, fica com cara de quem acredita num liberalismo capaz de prescindir de instituições democráticas sólidas de verdade.



Fonte ==> Folha SP

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