Semana passada, um evento climático extremo deixou milhões sem luz e paralisou parte do país. Não foi acidente: é o retrato de um sistema cada vez mais pressionado por secas, ventos fortes e chuvas torrenciais. Fala-se em resiliência, mas ela não virá sem enfrentar a próxima fronteira do setor elétrico brasileiro: integrar redes modernas com tecnologias de armazenamento, que já estão transformando sistemas no mundo e começam a ganhar escala por aqui.
Em um mundo marcado pela rápida expansão de solar e eólica, fontes variáveis e descentralizadas, a necessidade de integração só cresce. E essa integração depende, cada vez mais, de redes modernas e de armazenamento —a nova estrela do setor elétrico. Não é por acaso que o BNDES, em parceria com o MME (Ministério de Minas e Energia) e a EPE (Empresa de Pesquisa Energética), promoveu recentemente um evento dedicado ao tema. Um dos grandes desafios históricos da eletricidade sempre foi justamente a impossibilidade de armazená-la de forma economicamente viável. Esse limite tecnológico está sendo superado –e com isso se abrem novas possibilidades para o sistema elétrico brasileiro.
Olhando pelo retrovisor, nosso sistema hidrelétrico permitiu, por décadas, acomodar a ascensão das renováveis variáveis. A flexibilidade das usinas hidrelétricas (UHEs) foi essencial para integrar eólica e solar sem grandes turbulências. Mas essa flexibilidade nunca foi valorizada de maneira explícita. Ficou implícita nos contratos, como se fosse um recurso inesgotável. Hoje, com mais fontes renováveis variáveis (VREs, na sigla em inglês), eventos climáticos mais severos e hidrologias menos previsíveis, essa reserva de flexibilidade já não é suficiente –nem é justo exigir que hidrelétricas prestem serviços de estabilização sem incentivos adequados. Esse é um ponto que precisa ser revisitado.
Enquanto isso, no presente, o armazenamento começa a mudar realidades importantes. Os leilões para suprimento dos sistemas isolados, especialmente na Amazônia, mostram um caminho promissor. Esses sistemas, historicamente movidos a diesel –caro, poluente e pouco confiável– começam a ser substituídos por soluções modernas. O caso de Jacareacanga e de outras localidades no Pará, com a contratação de cerca de 30 MW de potência em uma solução híbrida que combina geração solar fotovoltaica, termelétricas a diesel e armazenamento em baterias, é emblemático. Trata-se do maior sistema de armazenamento químico (BESS, ou Battery Energy Storage System) já contratado no país, como destacou Lorena Perini, do MME.
No Nordeste, outro sistema isolado avança na descarbonização graças ao armazenamento. Às vésperas da COP 30, Neoenergia e o MME anunciaram um projeto que combina geração solar com baterias para reduzir o uso de térmicas e ampliar a confiabilidade local. A previsão é que o sistema se torne operacional em 2027. Armazenamento, portanto, já não é promessa: é prática em implementação.
Se avançarmos alguns passos à frente, vemos que seu papel será ainda maior. O LRCAP (Leilão de Reserva de Capacidade), previsto para o primeiro semestre de 2026, deve introduzir a contratação de armazenamento de longa duração, abrindo espaço para usinas reversíveis (Pumped Hydro Storage) e para sistemas BESS de maior porte. A lógica é simples: usar energia barata em determinados momentos para atender ao sistema quando ela é mais valiosa.
Mas, além das iniciativas centralizadas, existe uma fronteira igualmente relevante –a contratação descentralizada por grandes consumidores. A Absae (Associação Brasileira de Soluções de Armazenamento de Energia) estima entre 300 e 400 MWh em projetos prontos para avançar no mercado livre. Como observou Markus Vlasits, transparência de custos é condição básica para que isso ocorra.
É justamente aí que mora o desafio estrutural: a formação de preços. O armazenamento em energia segue a lógica de outros mercados: produzir quando custa menos para consumir quando vale mais. Mas isso só funciona se os preços refletirem essas diferenças. Sem sinais de custo claros, projetos deixam de ser viáveis, investimentos ficam travados e o sistema se torna mais caro para todos, comprometendo competitividade e capacidade de pagamento.
O Brasil já se moveu na direção correta ao retomar os leilões de reserva de capacidade. Eles ajudam, mas não resolvem. Integrar o armazenamento de forma inteligente exige recuperar o valor da flexibilidade hídrica, aprimorar sinais locacionais e temporais e combinar a contratação centralizada do LRCAP com a liberdade do mercado livre para inovar. Nada disso dispensa o essencial: um sistema de preços capaz de refletir a realidade físico-econômica do setor elétrico. Sem isso, não haverá tecnologia –nem hidrelétrica, nem solar, nem bateria– que garanta a resiliência que o país precisa.
Fonte ==> Folha SP