“Ainda Estou Aqui” faz sua estreia na Coreia do Sul, nesta quinta (2), com sessões esgotadas no Festival Internacional de Cinema de Jeonju, um dos mais importantes do país asiático.
O Oscar de melhor filme internacional e a crítica positiva ajudam a atrair espectadores, mas, para além disso, o longa de Walter Salles sobre a ditadura militar brasileira dialoga com um passado político semelhante dos coreanos.
“A história do Brasil na jornada rumo à democracia é também a da Coreia do Sul, do outro lado do globo”, diz Moon Seok, um dos responsáveis pela programação da mostra de Jeonju, cidade a 190 km da capital Seul. Os dois países viveram ditaduras militares ao mesmo tempo —o regime autoritário vigorou aqui de 1964 a 1985 e, na nação asiática, de 1961 a 1987.
“Há muitos pontos de ressonância”, afirma Moon. Ele descreve “Ainda Estou Aqui” como “muito interessante e comovente” e conta que a equipe do festival se identificou com a trama. “Tanto os mais velhos, que vivenciaram uma história sombria, quanto os mais jovens, devido à influência do estado de emergência de 3 de dezembro”.
Em dezembro do ano passado, o presidente Yoon Suk-yeol tentou impor a lei marcial, num movimento golpista. A forte oposição da população levou ao impeachment de Yoon. Desde então, a Coreia do Sul vive uma crise política, com trocas constantes no governo interino até a nova eleição.
Embora, é claro, haja diferenças entre as duas ditaduras, Moon diz que a ligação central com o longa brasileiro está na opressão desses regimes e a resistência do povo. “Aqueles no poder mobilizaram os militares e a polícia para prender inúmeras pessoas, muitas das quais morreram em circunstâncias desconhecidas ou suspeitas.”
Kim Cheul-hong, que há dois anos vive no Brasil para gerenciar o Centro Cultural Coreano, em São Paulo, destaca como os personagens lidaram com a dor. “Na Coreia também houve momentos trágicos semelhantes ao apresentado no filme, e muitas pessoas e famílias conseguiram suportá-los com resiliência”, diz.
O diretor da instituição descreve o longa com Fernanda Torres como calmo, mas que causa uma impressão forte que permanece. “Ao invés de focar apenas nos acontecimentos políticos e sociais da época, me deparei com o cotidiano de uma família comum”, comenta. “As belas praias do Rio, as refeições compartilhadas com amigos, os momentos simples entre os membros da família –essas cenas, embora diferentes das da Coreia, me pareceram familiares.”
A trama é centrada na família de Rubens Paiva, ex-deputado assassinado durante o regime. “A violência do Estado, de forma repentina, infiltrou-se na vida privada de uma família, e o filme nos faz sentir essa invasão”, diz a ensaísta e tradutora sul-coreana Anna Kim. “Os sons e as cores nos fazem sentir o temor das fissuras na estrutura social e, apesar de tudo, a continuidade da vida no presente. É um grande filme.”
Anna observa as semelhanças, no âmbito político, de como os países reprimiram movimentos opositores e adotaram uma linha pró-americana. “Desse período coreano, 15 anos foram marcados por uma ditadura extremamente autoritária”, afirma.
A tentativa recente de um novo golpe refletiu na seleção da 26ª edição da mostra de cinema, a segunda mais antiga da terra do k-pop. “Isso revelou que as fundações da democracia, que se pensava estarem firmemente estabelecidas desde o final dos anos 1980, eram mais frágeis do que o esperado”, explica Moon.
Em resposta, o festival criou a seção “Novamente, Rumo à Democracia”, com títulos que abordam os desafios da democracia em diferentes países. “O estado de emergência declarado em dezembro deu a esses filmes sua importância decisiva”, afirma o responsável pela programação. Entre eles, está outro brasileiro, “No Céu da Pátria Nesse Instante”, documentário de Sandra Kogut sobre as eleições de 2022 e a invasão do Congresso Nacional.
Outras duas produções nacionais figuram na mostra: “Um É Pouco, Dois É Bom” (1970), de Odilon Lopez, e “Onda Nova” (1983), censurado na ditadura, exibidos pela primeira vez na Ásia. Moon destaca a relevância histórica dos longas, que foram restaurados.
“O cinema brasileiro tem ganhado impulso, não apenas pelo trabalho de cineastas estabelecidos, mas também pelo surgimento de jovens diretores. O festival está prestando atenção a essa tendência”, ele afirma. A mostra tentou exibir “Apocalipse nos Trópicos”, documentário de Petra Costa sobre a influência do cristianismo evangélico na política de direita, mas o pedido foi recusado.
No caminho oposto, um filme sul-coreano sobre o golpe militar de 1979 estreou no Brasil há uma semana, “12.12: O Dia”. O título foi a maior bilheteria de 2023 no país asiático, atraindo 11,8 milhões de pessoas —um quinto da população—, e voltou a ser assunto.
“Quando os jovens se juntaram para protestar contra a lei marcial, muitos deles foram influenciados pelo filme. Eles viram soldados planejando derrubar o governo e realizando operações covardes, o que provavelmente serviu como uma lição histórica”, diz Moon. “A popularidade de tais histórias também serve como um lembrete de que nossa democracia permanece frágil.”
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Fonte ==> Folha SP